Maria Isabell Ackerley
Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Brasil.
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Na segunda metade do século XX, a relação entre a realidade e suas representações provocou um renovado interesse por questões já longamente debatidas e suscitou outras absolutamente inéditas. Este fenômeno foi impulsionado pelo alto grau de sofisticação atingido pelas técnicas de modelação da realidade, como consequência da terceira revolução tecnológica que teve lugar a partir de 1940-45. A sociedade burguesa está completando a terceira etapa de sua expansão, a primeira entre os séculos XVIII e XIX se conheceu como colonialismo, a segunda foi o imperialismo do século XX e atualmente a globalização.
Ernest Mandel, em seu livro o Capitalismo Tardio, tenta examinar a originalidade histórica desta nova sociedade a qual considera ser a terceira etapa ou momento da evolução do capital, e também demostrar que esta etapa é a fase do capitalismo mais pura se comparada com qualquer outro momento que a precedeu. Segundo a análise de Mandel, o capitalismo tem atravessado três momentos fundamentais, e cada um deles tem significado uma expansão dialética em relação ao período anterior : estes três momentos são o capitalismo de mercado, o estado monopolista ou do imperialismo, e nosso próprio momento, ao que equivocadamente se denomina pós-industrial, mas que para o qual um nome melhor poderia ser o de capitalismo multinacional.
A interpretação de Mandel sobre o estado pós-industrial supõe que longe de invalidar a análise realizada por Marx no século XIX, o capitalismo tardio, ou multinacional, ou de consumo, constitui, pelo contrário, a forma mais pura de capital que tenha surgido, uma prodigiosa expansão do capital até zonas que não tinham sido previamente convertidas em mercadorias. Antigamente Marx, no Manifesto Comunista tinha analisado o caminho traçado pela burguesia e prognosticando a globalização do capital e a conversão de tudo em mercadoria vendável como caminho inevitável do sistema. Sua análise nesse sentido parece ter se efetivado.
O mercado, esta entidade abstrata, virtual, ultimamente tão nomeada, criticada ou adorada se globaliza, no sentido em que os empresários já não tem fronteiras para vender suas mercadorias. Paralelamente a essa universalização dos produtos assistimos a uma diversificação, fragmentação, segmentação de produtos sem precedentes. a lógica do capitalismo é um incessante fervor por converter tudo em mercadoria. Depois de quatro séculos parece que sua lógica se estende aos mais recônditos confins : tudo é mercadoria.
E seu principal objetivo é não respeitar fronteiras, dando lugar ao processo que se conhece como Globalização. A velha ilusão de unidade social tão ansiada na modernidade se faz realidade, uma unidade social segmentada por nichos de mercado, de consumo. Unidade social representada pelo termo globalização financeira e cultural enquanto « gostos a consumir », que deriva de uma combinação dos imperativos que emanam das necessidades da produção de mais-valor e das necessidades ideológicas de dominação dos donos do global village. Na realidade este processo esta relacionado com a expansão anárquica do capital, com a necessidade de estender as fronteiras comerciais além das fronteiras nacionais.
Mas também, nesta etapa, se modifica a forma do poder. Ele muda e agora parece que não se executa mais através de práticas disciplinares mas sim através de práticas de controle, sendo seu exercício totalmente ligado à terceira revolução tecnológica. A isto temos que somar a terceira mutação do sistema ideológico dominante, o capitalismo, chamado agora globalização, capitalismo tardio, ou capitalismo multinacional segundo os teóricos. Mas que, de fato, significa a globalização do capital em duplo sentido : no geográfico e no sentido da conversão de tudo em mercadoria. Se articulamos estes três dados, revolução tecnológica, sociedade de controle e capitalismo tardio, os amarramos, e agregamos ao imperativo eternizado na pena de Nietzsche « Deus Morreu ! » (ou em outras palavras : não existem mais Fundamentos), temos que na nossa frente um novo Real está sendo velozmente constituído.
Aproximadamente a partir do século XVIII ante a necessidade de uma produção cada vez mais eficiente, o poder se espalhou e atravessou os indivíduos na forma de « disciplinas », ou também « tecnologias do corpo e do comportamento » que moldavam o homem de acordo com o ritmo do sistema. Com o tempo este ritmo foi instalado no mais profundo do indivíduo transformando-o numa máquina eficiente de produção. Foucault estudou e teorizou sobre o que ele denominou como sociedades disciplinares, as quais situou nos séculos XVIII e XIX, sendo que atingiram seu apogeu no início do século XX, onde os indivíduos (soldados, alunos, trabalhadores) eram fabricados como sendo parte da engrenagem de uma máquina. Como explica Deleuze, « o indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis : primeiro a família, depois a escola (‘você não está mais na sua família’), depois a caserna (‘você não está mais na escola’), depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão.
Foucault analisou muito bem o projeto ideal destes meios de confinamento, visível especialmente na fábrica : concentrar ; distribuir no espaço ; ordenar no tempo ; compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares. Mas o que Foucault também sabia era da brevidade deste modelo : ele sucedia às sociedades de soberania cujo objetivo e funções eram completamente diferentes (açambarcar, mais do que organizar a produção, decidir sobre a morte mais do que gerir a vida). Assim, desde a metade do século XX as sociedades disciplinares começaram a ser substituídas por outro modelo de organização do Poder. « São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. ‘Controle’ é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. » « Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. » Nesta nova mutação da história não é mais necessário confinar, submeter, ‘moldar’, senão, ‘modular’.
Como explica Deleuze : « Os confinamentos são ‘moldes’, distintas modelagens, mas os controles são uma ‘modulação’, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro. » -Assim como nas sociedades de disciplina foi imprescindível a prisão, o hospital, a escola como máquina de confinar, de moldar. Na sociedade de controle os mecanismos são a informação contínua, monótona veiculada pelos meios. Como dissera Foucault as sociedades disciplinares tinham dois polos, o indivíduo e a massa. Cada grupo em seu « agenciamento » formava uma única força de trabalho, ao tempo em que cada indivíduo era moldado disciplinado para constituir essa força. Na sociedade de controle os indivíduos tornaram-se « dividuais » e « divisíveis » e as massas se transformaram em amostras, dados, mercados ou « bancos ». « Estamos entrando nas sociedades de controle, que funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea. » « O que está sendo implantado, às cegas, são novos tipos de sensações, de educação, de tratamento. « A cada tipo de sociedade, evidentemente, pode-se fazer corresponder um tipo de máquina : as máquinas simples ou dinâmicas para as sociedades de soberania, as máquinas energéticas para as de disciplina, as cibernéticas e os computadores para as sociedades de controle. » Disciplinamento dizia respeito a um começo-desenvolvimento-fim.
O indivíduo era disciplinado e o comportamento tinha um fim : o trabalho, que embora fosse alienado e o único que lograva ver os resultados e objetivos era o dono da fábrica, existia a idéia e a concepção de « limite » : o trabalho era um limite em si mesmo ; a escola, a fábrica, a família constituiam o mundo, e a ideologia, partido político ou a prática religiosa davam a sensação de poder modificar esse mundo para melhor. A história era percebida com um princípio, e um fim, no caminho tudo era progresso e evolução. A sociedade de controle não apresenta limites, não mostra um fim, as pessoas não param (ilusoriamente) de se formar, de ascender socialmente, ou dentro da empresa, não param de consumir, de sentir, não existe fim. « O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e discontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado. » escreve Deleuze .
Neste novo modelo de muitos « apelidos », sociedade de consumo, sociedade pós-industrial, sociedade dos MCM, sociedade da informática, sociedade eletrônica ou sociedade digital de forma inapelável, a cultura, as pessoas, a guerra, a arte, o corpo, os lugares, se convertem num fugaz objeto de canibalismo. Dizemos fugaz porque a lógica do consumo é que incessante e velozmente se devore o objeto para assim rapidamente estar disposto a repetir o processo com outro objeto esquecendo o anterior. Este mecanismo se vê reproduzido a escala global pelos MCM que propagam infinitamente a necessidade e o desejo. Como se o homem se tornasse uma máquina de consumo para o sistema, enquanto as máquinas ocupam o lugar do homem na produção. Segundo Heinz Dieterich, « Todo sistema social clasista se basa en cuatro formas de poder : el económico, el político, el militar y el cultural. Entre estos poderes, dos son decisivos : el económico y el militar. El primero, porque determina el nivel de reproducción física de la población y con eso su lealtad frente a las élites en el poder ; el segundo, porque es la última ratio de la cohesión de una sociedad de clase, tanto hacia el interior como frente a otros estados. Dentro de lo económico incluimos en esta reflexión los grandes aparatos de comunicación y propaganda – particularmente, la televisión – que ejercen funciones claves para la indoctrinación de las masas y, por ende, para la estabilidad de la democracia liberal ; mas que, en primer lugar, y ante todo, son empresas capitalistas transnacionales, destinadas a realizar ganancias ».
A multiplicação dos objetos de consumo está produzindo um excesso de opções que facilita a não vinculação afetiva. As coisas são compradas para ser devoradas, usadas, desgarradas no instante para logo, ritualisticamente, sem ilusão e sem sentimento, repetir o ato de consumo. Sem sedução, sem magia, sem véus, sem deus, o « homem do prazer », vive na solidão e angústia do eterno presente.
Com o nome que cada qual prefira, esta nova realidade é um sistema homogêneo que responde a uma dominação cultural, econômica e ideológica. E que não apela a um futuro possível, ao progresso, à utopia mas sim ao aqui e agora, ao tempo real, ao objeto, a atingir os sentidos em sua forma material e prática, não no sentido espiritual ou metafísico. Este sistema, semelhante ao de Pavlov com o cachorro, estabelece uma relação estímulo-resposta sem espiritualidade, sem pensar, o fato se consuma no « instante ». Só o reflexo repetitivo, monôtono, anômico, bulímico de sujeitos esvaziados de alma ou, se se prefere, de « objetos » esvaziados de espírito, onde sua única religião, ideologia, utopia, sensibilidade se manifesta na consumação do ato « compra-venda » de uma mercadoria.
Interminável seria a lista dos exemplos desta mutação da realidade de um lugar em que as coisas materiais e imateriais tinham sua « própria identidade », talvez uma identidade com « conteúdo histórico », ou sem conteúdo mas com um lugar « original », « único » que lhes pertencia, para este outro lugar onde qualquer objeto, sujeito e até espírito ocupam o mesmo estatuto de objetos esvaziados de conteúdo, de história, de originalidade, de autonomia.
Materialidades e imaterialidades, pessoas, ídolos, máquinas, sentimentos mercadologicamente sustituíveis, sem emoção, sem luto, sem sensação de perda.
Esta ideologia de mercado não deixa lugar para uma oposição, ela se impõe como única alternativa, única realidade que envolve inclusive a difusão dos acontecimentos científicos, tecnológicos, religiosos, políticos, econômicos e ideológicos. Em definitivo ela não permite o nascimento nem existência de um Outro ; assassina e banaliza o « diferente ».
E, se o ilimitado é a falta do Outro, poderíamos pensar que o Outro é o limite. Portanto o ilimitado é a negação do Outro. Na sociedade atual, a Globalização Real-Virtual é Ilimitada. Sua reprodução é redundante, se alimenta de si mesma, é tautista portanto infinita. Ela matou ao Outro.
BIBLIOGRAFIA
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